Planos de saúde não podem negar contratação ou cobertura a pessoas com autismo — decisões judiciais reconhecem a prática como discriminatória e garantem indenização por danos morais.
DANO MORAL E DISCRIMINAÇÃO
Em um dos muitos casos com os quais tive que lidar na minha advocacia em prol de pessoas com Transtorno do Espectro Autista, peguei um caso uma vez em que uma mãe veio a mim desesperada porque a Operadora de plano de saúde tinha simplesmente rescindido o contrato de plano de saúde do filho dela.
Ela tinha recebido no e-mail uma mensagem da operadora dizendo que o plano seria extinto em cerca de alguns dias pois “foram identificadas divergências na utilização dos serviços assistenciais quando comparado às documentações e informações apresentadas no ato da contratação do plano de saúde, em especial à Declaração de Saúde”. O e-mail não dizia de forma explícita quais seriam essas supostas “divergências”, mas ao que tudo indicava, se trata do autismo.
Em contato com a operadora, foi dito à essa mãe que o contrato “poderá ser rescindido unilateralmente na hipótese de fraude, omissão ou fornecimento de informações incorretas ou inverídicas pelo BENEFICIÁRIO ou CONTRATANTE para auferir vantagens próprias, para si ou para outrem, hipóteses essas reconhecidas como violação às disposições contratuais e ao princípio da boa-fé objetiva”.
Sendo assim, houve discriminação da operadora contra o seu beneficiário, em razão do autismo.
Entramos com processo judicial para manter o plano de saúde e conseguimos a liminar.
Na contestação a operadora foi explícita: realmente se tratava do autismo.
A operadora afirmou que, ao contratar o plano de saúde, a mãe deveria ter preenchido a questão do autismo como “doença pré-existente” no formulário da “Declaração de Saúde”. Como não o fez, teria ocorrido uma omissão de doença preexistente no ato da contratação, o que consistiria em fraude.
Um absurdo.
De acordo com a jurisprudência pátria (conjunto de decisões judiciais de nosso país), a negativa de contratação de plano de saúde a uma pessoa com Transtorno do Espectro Autista (TEA) é considerada uma prática discriminatória e abusiva.
A Lei nº 12.764/2012, conhecida como Lei Berenice Piana, garante os direitos das pessoas com autismo, incluindo o acesso a serviços de saúde sem discriminação. Neste sentido o TJSP:
APELAÇÃO – PLANO DE SAÚDE – NEGATIVA DE CONTRATAÇÃO – MENOR PORTADOR DE TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA. Ação de obrigação de fazer e reparação por dano moral – Sentença de procedência – Insurgência da operadora ré – Rejeição – Recusa de adesão ao plano de saúde em razão da condição de saúde do autor, menor com transtorno do espectro autista – Negativa de contratação considerada discriminatória e abusiva, em violação à Lei nº 12.764/2012 (Lei Berenice Piana), que garante os direitos das pessoas com transtorno do espectro autista – Dano moral caracterizado em razão da lesão à dignidade humana e aos direitos fundamentais do autor – Redução do valor da indenização de R$ 20.000,00 para R$ 10.000,00, em conformidade com os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, assegurando o caráter pedagógico da condenação sem provocar enriquecimento ilícito. Sentença, em parte, reformada – Recurso a que se DÁ PARCIAL PROVIMENTO. (TJ-SP – Apelação Cível: 10545034520238260002 São Paulo, Relator.: Inah de Lemos e Silva Machado, Data de Julgamento: 22/07/2024, Núcleo de Justiça 4.0 em Segundo Grau – Turma V (Direito Privado 1), Data de Publicação: 13/09/2024)
Nas passagens da fundamentação do acórdão da Apelação Cível: 10545034520238260002 do TJSP:
“A Lei nº 12.764/2012 (Lei Berenice Piana), assegura direitos às pessoas com transtorno do espectro autista, proibindo condutas discriminatórias, como negar a inclusão em planos de saúde com base na condição de saúde do proponente (artigo 5º). A sentença, aplicou corretamente os dispositivos legais, ao destacar a violação da dignidade da pessoa humana e o direito à saúde, ambos protegidos pela Constituição Federal.
Portanto, ao se recusar a contratar com o autor, a operadora violou o dever de boa-fé objetiva, princípio basilar das relações consumeristas, além de desrespeitar o direito fundamental à saúde do menor.
Veja-se a propósito:
“Apelação cível. Plano de saúde. Recusa em contratar. Menor diagnosticada com autismo. Danos morais. Sentença de procedência. Manutenção. Autora demonstrou ter tentado efetuar a contratação. Junta emails e proposta de adesão. Negativa por telefone. Autora informa protocolos de atendimento. Caberia à ré comprovar os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado pela autora. Ônus do qual não se desincumbiu. Recusa em contratar. Conduta vedada pelo CDC, Lei 9656/98 e lei 12.764/12. Caracterização de dano moral. Conduta da ré é discriminatória e gerou situação de aflição psicológica. Situação que ultrapassa mero aborrecimento. Indenização mantida em R$5.000,00. Apelação não provida.” (TJSP – AC: 10161580420198260114 SP 1016158-04.2019.8.26.0114, Relator: Edson Luiz de Queiróz, Data de Julgamento: 25/06/2020, 9a Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 25/06/2020)”
No caso da Apelação Cível: 10545034520238260002, o TJSP fixou indenização de 10 mil reais.
Além disso, o artigo 14 da Lei nº 9.656/98 estabelece que ninguém pode ser impedido de participar de planos de saúde em razão de deficiência, o que inclui o autismo.
Art. 14. Em razão da idade do consumidor, ou da condição de pessoa portadora de deficiência, ninguém pode ser impedido de participar de planos privados de assistência à saúde.
Logo, a jurisprudência tem reiterado que a recusa de adesão a planos de saúde com base na condição de autismo é ilegal e viola os direitos fundamentais à saúde e à dignidade da pessoa humana.
Agravo de instrumento. Plano de saúde. Ação de obrigação de fazer c.c . indenização por danos morais. Decisão que indeferiu o pedido de tutela antecipada para Acolhimento. Presentes os requisitos do art. 300, do CPC. Beneficiário menor que é portador de Transtorno do Espectro de Autismo. Probabilidade do direito evidenciada pela documentação acostada aos autos que indica que a recusa na contratação do plano de saúde pela operadora se deu de forma discriminatória. Perigo de dano em razão do menor estar em estágio de desenvolvimento necessitando de tratamento imediato para a moléstia que o acomete. Adotado parecer da PGJ. Decisão reformada. Recurso provido. (TJ-SP – Agravo de Instrumento: 2243409-08.2023 .8.26.0000 Cotia, Relator.: Emerson Sumariva Júnior, Data de Julgamento: 20/12/2023, 5ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 20/12/2023)
Ementa: APELAÇÃO. CONSUMIDOR. AÇÃO DE CONHECIMENTO. PLANO DE SAÚDE COLETIVO POR ADESÃO. RESCISÃO UNILATERAL DA OPERADORA. TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA. BENEFICIÁRIO EM TRATAMENTO. PORTABILIDADE A PLANO DE SAÚDE INDIVIDUAL. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. 1. Na esteira do enunciado n. 608 da Súmula do c. STJ, o Código de Defesa do Consumidor é aplicável aos contratos de assistência à saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão. 2. Segundo entendimento jurisprudencial, a resilição unilateral do contrato de plano de saúde coletivo é permitida, desde que cumprido o prazo mínimo de vigência de 12 (doze) meses e realizada a necessária notificação prévia do segurado, com antecedência mínima de 60 (sessenta) dias, na linha do que dispunha o parágrafo único do art. 17 da Resolução Normativa n. 195/09 da ANS. 3. Para a resilição unilateral do contrato de plano de saúde coletivo, exige-se, ainda, que a operadora de plano de saúde assegure a oportunidade de o contratante migrar para outro plano, na modalidade familiar ou individual, sem exigência de cumprimento de novo prazo de carência, preservando-se a continuidade da prestação dos serviços de saúde, sobretudo para aqueles que deles dependem com urgente necessidade, nos moldes do art. 8º da Resolução ANS n. 438/18. 4. Ainda que a resilição de contrato cumpra os aludidos requisitos formais, a extinção do negócio jurídico não pode resultar em interrupção de tratamento médico contínuo e necessário ao qual o beneficiário esteja eventualmente sendo submetido, segundo precedentes do c. STJ, com fulcro no art . 13, III, da Lei n. 9.656/98. 5. Na hipótese, extrai-se dos autos que os autores receberam notificação acerca da resilição unilateral do contrato, com prazo de 60 (sessenta) dias de continuidade da prestação do serviço assistencial. Contudo, ao tentarem a portabilidade do plano de saúde para a modalidade individual/familiar, tiveram o requerimento negado pela operadora do plano de saúde ao argumento de ‘falta de atendimento aos critérios técnicos’. Ademais, um dos autores possui transtorno do espectro autismo (TEA) e estava em tratamento, quando do recebimento da denúncia do contrato. 6. A resilição imotivada de contrato de plano de saúde, com óbices à portabilidade para plano na modalidade individual/familiar fornecido, bem como durante o tratamento do beneficiário, revela-se ilícita, autorizando a manutenção do contrato de assistência à saúde anteriormente contratado. 7. Recurso conhecido e desprovido. (TJ-DF 07180132520238070003 1891885, Relator.: SANDRA REVES, Data de Julgamento: 15/07/2024, 7ª Turma Cível, Data de Publicação: 25/07/2024).
Portanto, conforme as fontes citadas, tal negativa com base no autismo é interpretada como discriminação, cabendo indenização por danos morais.
Negar plano de saúde em razão de autismo (seja no ato da contratação ou depois dele, com tentativa de cancelamento unilateral) é ato discriminatório e gera dano moral em razão da lesão à dignidade humana e aos direitos fundamentais da pessoa com TEA.
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